A lojinha de conveniência era simples e compacta, e não era muito diferente de outros estabelecimentos do mesmo nicho, nem mesmo daqueles do mesmo quarteirão. O nome mesmo já dizia, era de conveniências. No primeiro corredor ficavam os biscoitos e comidas instantâneas, assim como barrinhas e outros itens de alimentação de fácil consumo, eram os mais procurados quando se tratava de estudantes na hora do intervalo ou trabalhadores atrasados para o serviço. No segundo, parte se dividia em revistas e jornais e mangás, e todo o tipo de conteúdo literário que se poderia encontrar em uma loja tão pequena. Do outro lado, onde costumavam ficar as fitas e DVDs de filmes, agora se encontravam os acessórios para casa e para os celulares, coisas que ninguém realmente precisava, mas que desejavam ter, também os itens de higienização e cremes. Ao fundo da loja, os frios e congelados, assim como as bebidas colocadas no alto. Os refrigerantes e sucos formavam uma parede colorida e chamativa para quem quer que entrasse no lugar.
No balcão principal, doces e guloseimas, cigarros e temperos e chocolates, cartões postais e anúncios com publicidades enormes, as mesmas que se repetiam pelo resto da loja. Um pouco mais abaixo, do outro lado do caixa, um pequeno forninho para aquecer os produtos cujo os clientes pediam para comer na hora, e um espacinho, onde o dono se encontrava agachado, escondido.
"Oi, desgraçado. O que você acha que está fazendo?" A voz ríspida do homem que havia entrado a poucos minutos fez com que o pequeno senhor, escondido naquele mísero espacinho, tremesse com medo. "Tá tentando me passar a perna? Eu sei que você faz bem mais do que isso por dia, não adianta querer me enganar, eu tenho cara de idiota por acaso?"
Sem receber resposta, ele estalou a língua, dando a volta no balcão e se agachando, ficando com altura o suficiente para encará-lo com agressividade. Ele era alto, não exatamente robusto, mas sua forma com certeza era mais bem construída que a maioria dos homens daquela idade. Parecia estar em seus plenos 30 anos, com um cabelo escuro raspado rente a cabeça, exibindo uma tatuagem de texugo no pescoço acima da linha do casaco que trajava.
"Você vai me responder ou não?"
O dono da loja prensou os lábios, os olhos marejados de lágrimas. "Por favor, é tudo o que tenho, se eu te der mais alguma coisa minha neta não terá como ir à escola essa semana."
Os olhos do homem se estreitaram, a boca se levantando num quase rosnado, "E eu perguntei isso por acaso?" Ele sacou a faquinha, passando por debaixo da portinhola horizontal para ficar de frente para o outro, "Eu vou te dar mais uma chance antes de eu te cortar todinho." Colocou a lâmina do objeto voltado para a garganta do senhor. "Cadê o resto do dinheiro?"
Lágrimas escorriam de nervoso. Com as mãos tremendo, ele apontou para a parede de frente para eles. Na altura de onde estavam, eram visíveis várias caixas de diferentes recipientes de balas. O homem se afastou, puxando o senhor junto dele com força quase que o suficiente para que ele caísse, mas o manteve firme com um aperto no braço e gesticulou com a faca na direção delas.
"Pega tudo. Agora."
Ainda chorando silenciosamente, o dono pegou a primeira caixinha de alcaçuz e tirou de lá algumas notas escondidas num saquinho no meio dos doces, depois, fez o mesmo com as embalagens de saquinhos de melão e de banana, e, por último, as balinhas de gengibre que ele mantinha mais fundo na prateleira. Seus últimos trocados.
O homem sorriu, predador, canino. Arrancou o dinheiro das mãos trêmulas do idoso e deu uma olhada rápida, parecendo satisfeito com a quantia.
"Agora sim, bem melhor." Olhou para o outro com escárnio e deu dois tapinhas leves com a lâmina no queixo dele. "Viu só? Não precisava ter me irritado tanto. Eu juro que não entendo como vocês conseguem ser tão mesquinhos! Logo logo você recupera isso aqui, e hoje só vai ter sido um dia ruim."
Se afastou, levantando junto com a portinhola e empurrando o idoso com o pé para desequilibrá-lo e fazer com que ele caísse, para logo em seguida levar a perna para trás e então para frente como quem quer acertar uma bola de futebol no gol lançando do meio do campo. Exceto que o alvo era a perna do outro.
O senhor gritou de dor, agarrando a batata da perna com medo, retrocedendo para o espacinho embaixo do balcão de onde fora puxado.
Espanando uma poeira inexistente da roupa, o homem se arrumou como se não tivesse feito nada demais, e olhou para o idoso, zombeteiramente pedindo desculpas. "É só pra ter certeza de que você não vai tentar sair daqui tão cedo."
Ele guardou o dinheiro no bolso e pegou uma barrinha de flocos de arroz na prateleira próximo a porta.
Abriu a embalagem, tirando uma mordida, e, antes de sair, disse alto o bastante para que tivesse certeza de que o outro ouvira, "Obrigado pelo lanche."
Não era comum que crimes acontecessem naquela parte da cidade. Era uma regra não explicitamente declarada que era cumprida com zelo e todos os vagabundos que voavam solo por aquelas bandas eram mais espertos que tentar abusar de seus moradores e comerciantes.
Não que aquela cidade fosse especial em todo o distrito, muito menos em todo o país. Os crimes já eram extremamente escassos comparados a outros lugares, mas haviam certos pontos onde eram praticamente inexistentes.
Porque todos sabiam o que acontecia com quem pisava fora da linha.
O senhorzinho da loja passou pela patrulha da polícia, ciente de que não resolveriam nada por aquelas bandas além de preencher um boletim. Não eram incompetentes, apenas não iriam atrás de um problema que seria resolvido por si só em bem menos tempo do que eles conseguiriam. O boletim, porém, ajudaria o senhor a receber um reembolso dos danos caso as coisas não dessem certo.
Ele voltou para casa, de cabeça baixa, sendo recebido com lágrimas de preocupação de sua filha e sua neta, cujo pai há muito havia morrido e a mãe era extremamente frágil de saúde, e os três choraram baixinho ajoelhados na madeira fria da sala, enquanto a tempestade castigava lá fora.
Não muito longe dali, do outro lado da cobertura segura de um telhado, enquanto o céu caia por sobre a cabeça de quem se aventurava pela rua, um homem corria.
Um homem alto, robusto o suficiente para agir como um covarde. O homem corria desesperadamente pelas ruas, passando por becos estreitos e pelas vielas escorregadias, quase caindo a cada passo em falso e sentindo o coração bater tão forte que quase parava no peito toda vez que encontrava alguma esquina sem saída, se apressando para voltar e encontrar um novo buraco para se enfiar. O homem, como um rato de esgoto molhado na escuridão que corria pelos paralelepípedos com suas pequenas patinhas habilidosas, também tentava escapar do destino inevitável que esperava por todos iguais a ele. Seus cabelos escuros quase raspados agora com uma camada generosa de água e suor, fazendo com que escorresse pela tatuagem de texugo no pescoço.
Com seus pés rápidos, talvez tivesse conseguido escapar. Ninguém tinha seu futuro escrito em pedra, afinal. Talvez, ele pensara que pudesse correr por tempo o suficiente para que eles simplesmente desistissem, ou que pudesse fazer com que se perdessem se fosse esperto dessa forma.
Mas sua grande desvantagem, que viera a se tornar seu fracasso, se dava a sua própria estupidez. Como ele poderia ter vantagem sobre um terreno que ele não conhecia? Cada vez que tinha que refazer seu caminho, eram segundos preciosos que perdia, e aos poucos sua vantagem foi sumindo. Sumindo.
Até não restar nenhuma.
Quando aqueles que o seguiam conseguiram alcançá-lo, o homem já não tinha mais fôlego para correr, muito menos para andar ou rastejar. Jogou-se de joelhos, clamando por piedade por todo o caminho que fora arrastado, mas nenhum deles o ouviu.
Foi levado a uma sala. Não era uma sala especial, era somente um cômodo seco de um prédio em construção qualquer ali perto. Pela distância que percorreram, o homem descobriu seu erro, o porquê de ter sido pego com tanta facilidade. Havia sido enganado para cavar sua própria cova. Cada esquina bloqueada, cada rua sem saída, serviram para o levar cada vez mais para dentro da toca do lobo. Havia corrido durante horas para acabar exatamente no lugar onde eles queriam que ele estivesse, como um predador que brinca com seu jantar.
No centro da sala, cercado de figuras escuras cujo os rostos eram apenas parcialmente revelados com cada raio que caía, um outro homem o esperava sentado numa simples cadeira de madeira. As pernas cruzadas e as mãos apoiadas nelas, paciente, como se não tivesse tido dúvida nem por um segundo de que o outro não escaparia.
O lobo em pessoa.
"Me desculpe," ele suplicou, antes mesmo de ter os braços largados, derrubando-o no chão em frente ao outro. "Eu não sabia-"
Se calou imediatamente quando ele levantou a mão, sinal de que não queria ouvir.
O lobo respirou pesadamente, se inclinando para trás na cadeira, alternando as pernas e o observando, como se tentasse ler os pensamentos dele apenas com o olhar. Ficou em silêncio por vários segundos e na sala apenas se ouvia a respiração ofegante daquele que estava jogado no chão.
"Eu não entendo o seu tipo," ele finalmente declarou, a voz firme e cansada. "Eu deixei claro de que não deixaria que esse tipo de coisa acontecesse no meu distrito, não?" Perguntou para ninguém em especial, e também não esperou resposta. "Que os meus habitantes tem segurança e que minhas ruas eram dedetizadas contra todos os tipos de pragas, então porquê, eu me pergunto, as baratas continuam tentando emergir dos bueiros de onde saíram apenas para serem esmagadas pelos meus sapatos?"
"Eu sinto muito-"
"Mas esse é o problema, veja. Baratas não sentem. Baratas não pensam. Elas saem do bueiro quando está quente e desconfortável, elas caçam comida e espalham ovos e doenças por todo lugar. Mas é assim que baratas são, é só o que elas sabem ser. Não, as baratas não tem culpa." As frases saíam ríspidas, demonstrando que, apesar do exterior calmo, seu interior não continha muita paciência restante. Ele estalou a língua e o outro estremeceu, abaixando a cabeça, esperando que aquele ato dissesse que não planejava nada. "A culpa é daqueles que não tomam conta. Que não se previnem e que não são asseados o suficiente para mantê-las longe. Já conheci vários desses durante a minha vida. Porcos, todos eles. E dessa podridão surgem as baratas e os ratos e as doenças e a fome."
Os olhos dele quase brilhavam na escuridão.
"Eu não sou assim, e pensei ter explicado bem da primeira vez. Disse exatamente o que aconteceria caso causassem tumultos no meu território, e mesmo assim alguém aqui teve a audácia de tentar. E não menos, tentar escapar depois, ao invés de ser valente o suficiente para lidar com as merdas que fez. Não." Ele ficou em silêncio novamente por mais alguns segundos, "Você tem alguma última consideração?"
"Eu não sabia que ele estava no seu distrito ainda! A loja dele fica bem na divisa, eu pensei que fosse seguro lá-"
"Não minta pra mim!" O lobo o interrompeu, a fúria explícita na voz e na postura, agora na ponta da cadeira, segurando nos braços dela como se tentasse parar de avançar. "Todos sabem onde começa e onde termina Hokongo. Você não veio de tão distante, apenas da cidade ao lado. Não, você achou que poderia aprontar na divisa e fugir sem ser pego, mas adivinha. A família Jouki não é conhecida por dar terceiras chances, muito menos para seres tão desprezíveis quanto o que vejo."
O lobo se levantou, calmo. Seu terno estava alinhado e sem um pingo de água nas barras da calça, seus sapatos lustrosos na baixa luz, seu rosto coberto pelas sombras da noite e de seus ombros pendia a parte de cima de um kimono, aberta, sem estar segurada pelos braços. Ele ajeitou as luvas de couro em suas mãos, ainda olhando para a figura patética à sua frente.
"Vocês podem se divertir, mas sem bagunça depois. Deem um fim nessa barata, descubram onde foi parar o dinheiro, e devolvam para o morador. Eu quero isso pronto até o nascer do sol."
"Sim, wakagashira." As outras figuras de pé permaneceram onde estavam, esperando que o líder passasse pelo homem ao chão antes de começar a se mover. Apenas um deles, o mais distante do grupo, se destacou da formação, ao invés disso, acompanhando o outro na saída do prédio.
Ele sacou um guarda-chuva, abrindo-o e colocando-o sobre a cabeça dele.
"Tem mais algum problema que eu precise lidar antes de dormir?" Ele perguntou, enquanto ambos saiam para a rua iluminada pelo poste. A face jovem do líder era marcada pela expressão de raiva e por uma cicatriz na bochecha. Marcas de guerra, era o que diriam, ajudava a botar medo em quem precisava.
A sinfonia de gritos ao fundo começara.
O outro, já com um telefone na outra mão, checava a agenda dele. "Acredito que não, a não ser que surja mais alguma coisa de emergência, seu próximo compromisso é somente a reunião de amanhã. É sobre aquele assunto pendente." Os grunhidos eram audíveis mesmo agora do lado de fora. "Como que você sabia que ele ia agir hoje?"
Ele deu de ombros.
"Experiência? Depois de um tempo você já sabe quem vai cumprir o combinado e quem não vai. Esse aí eu tinha certeza de que não entenderia a mensagem. Nem todos merecem outra chance Chao Shi."
Chao Shi olhou para ele por algumas batidas, "O senhor realmente mudou nesse tempo, não é?"
Foi observado de volta com o cenho franzido, "Me chama de senhor de novo e eu jogo você do próximo táxi."
Chao Shi riu, assentindo logo em seguida, "Ou talvez eu que tenha me enganado, Jouki Joui."
Joui bufou, "Que tom condescendente é esse, uh? Perdeu a noção."
"Você não vai fazer nada comigo, não tem mais ninguém que consiga organizar as suas tarefas."
Eles se encararam por alguns segundos, sem real agressão na briga. Os gritos continuaram e Joui apertou a ponte entre os olhos.
"Vamos embora, eu já estou cansado daqui."
Chao Shi concordou, com as chaves já em mãos para destravar o carro. "Sim, wakagashira."